Caymmi: um brechtiano da Bahia
A arte por vir manifesta o elemento prático da vida cotidiana sem a qual não é vanguardista, mas mera reprodutibilidade técnica.
Publicado primeiro no Passa Palavra (30/01).
Não são poucos os poemas de Brecht que revelam seu humanitarismo e a vertente ideológica a que se afiliou. Tendo crescido e feito arte durante o período do stalinismo, o autor, porém, nunca se comprometeu por professar a orientação política soviética, ainda que seus escritos sejam a expressão mais límpida da fraternidade entre trabalhadores. Um traço importante da arte de Brecht é que este se ocupou dos efeitos concretos da alienação do trabalho na sociedade capitalista. Autores como João Bernardo afirmam que essa disposição é a de olhar para a mais-valia enquanto uma relação social, e pensam as relações de produção a partir da reificação promovida pelo trabalho, que a análise econômica, por muitas vezes, também pode desconsiderar.
Seus poemas Perguntas de um operário que lê e General, teu tanque é um carro forte desvelam como o componente humano e a consciência humana podem ser subestimados nessa reificação. A disciplina do trabalho e a própria ideia que o trabalhador, definido por sua atividade, é um sujeito passivo na economia, enquanto o comprador da força de trabalho, o capitalista, este sim, é um sujeito ativo, é objetivo de suas reflexões e que define aquilo que João Bernardo chamou de marxismo que põe em xeque as relações sociais de produção.
Terá a ideia de autonomia no anticapitalismo morrido com Brecht? Evidente que não, e temos menos razão ainda para crer que, se ela ainda existe, esteja a tantos quilômetros de distância. Wilson das Neves, por exemplo, quando ameaçava que o morro desceria para a pista fora de período de carnaval, estava dizendo precisamente que os populares não dependem dos intelectuais para fazer aquilo que um ex-hegeliano nos alertava no século XIX. A transformação da sociedade é obra dos próprios trabalhadores, ou não será. Tom Zé uma vez gravou uma composição sobre a classe operária. Dizia que os proletários teimavam porque não compreendiam, como os teóricos da classe operária, quais eram os verdadeiros anseios da classe operária. Perdoai-vos, São Marx! Eles não sabem o que fazem!
Dorival Caymmi, que eu não escuto há muito tempo, mas tempo suficiente para achar brilhante, faz do eu-lírico uma confusão artística: Seus versos dizem “o Mar”, “O barco”, “os peixes”, mas o que se constata não são coisas, mas pessoas e a disposição da práxis entre elas. Em A Jangada voltou só, por exemplo, Caymmi ressaltou o carinho dos pescadores pelos pescadores Chico Ferreira e Bento. A selvageria do mar, porém, fez que a jangada voltasse só. Como um objeto de trabalho, a jangada poderia viajar com tantos outros, mas seriam Chico e Bento substituíveis, afinal? Não para aqueles que os conheceram.
Na canção O Mar o personagem é Pedro, também um pescador:
Pedro vivia da pesca
Saía no barco
Seis horas da tarde
Só vinha na hora do sol raiáTodos gostavam de Pedro
E mais do que todas
Rosinha de Chica
A mais bonitinha
E mais bem feitinha
De todas as mocinha lá do arraiáPedro saiu no seu barco
Seis horas da tarde
Passou toda a noite
Não veio na hora do sol raiá
Deram com o corpo de Pedro
Jogado na praia
Roído de peixe
Sem barco sem nada
Num canto bem longe lá do arraiáPobre Rosinha de Chica
Que era bonita
Agora parece
Que endoideceu
Vive na beira da praia
Olhando pras ondas
Andando rondando
Dizendo baixinho
Morreu, morreu, morreu, oh…O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito.
Entre a penúltima e a última estrofe vê-se uma interrupção dramática. O mar, embora perigoso, é bonito. Assim se percebe. Pedro, no entanto, ofuscou a beleza do mar com sua morte, e talvez a beleza no mar resida nisto, em sua capacidade de ser domado pela humanidade, por Pedro, pela beleza dos homens.
Caymmi, narrador exógeno do canto reconhecia a beleza do mar, que era mórbido para Rosinha. As duas canções são do álbum O mar e o vento e em suas outras composições a pesca, o mar e os pescadores são os elementos essenciais, mas tudo é visto a partir do prisma do pescador, para quem o mar é seu objeto, enquanto é ele mesmo um objeto do capitalista. As pessoas e suas intuições são, na arte de Caymmi, incorporadas à experiência do ouvinte. É apaixonante ver que, assim, podemos de forma única abandonar nossa singularidade e reconhecer a consciência de outros sujeitos, que nos são tão familiares. A pesca, para aquele que emprega o pescador, é tão diferente, ao passo que ele pode ouvir essa canção e sentir que ele mesmo esteja pescando. Mas chorará, como Rosinha, pela vida e consciência do pescador? A arte por vir manifesta o elemento prático da vida cotidiana sem a qual não é vanguardista, mas mera reprodutibilidade técnica, como observou Walter Benjamin.